26 de ago. de 2011

25 de Outubro de 2005
O ingrato

Destilado em tóneis de carvalho por Paulo Brabo


Estocado em Família, Fé e Crença

Ocorreu-me apenas recentemente (e já não era sem tempo, refletirão alguns) que sou um patife.

Vivo cercado de gente dotada de maturidade e profundidade emocional: meus pais, minhas irmãs e cunhados, meus amigos. Alguns mais, outros menos (vocês sabem quem vocês são), mas em contraste com qualquer um deles sou como lâmina d’água em parque de monumento: raso e vistoso. Muito marketing e pouco conteúdo.

Numa discussão famosa, o diabo argumentou que Jó era justo somente porque Deus o tinha por favorito e cobria-o de bençãos. Qualquer um seria justo sendo alvo de tantos privilégios, o diabo parecia estar querendo implicar. Pois eu, tendo tudo como Jó, sou patife quando ele era justo.

Em nenhuma outra coisa minha mesquinhez fica mais clara do que no meu trato com as pessoas. Eu, que vivo apregoando que nada me interessa neste mundo mais do que as pessoas, passo pela vida sem deixar qualquer evidência concreta disso.

“Até os pecadores tratam bem os próprios amigos”, argumentou Jesus, mas não levava em conta exceções como eu. Eu trato mal os meus amigos. Trato mal os que me tratam bem.

Impossível expressar aqui a gentileza inabalável que me concedem o Hélio, o Marcelo, a Isa, a Alice, a Paula, para não mencionar praticamente todos os amigos e conhecidos. Já eu, de minha parte, nada faço para reagir à dedicação deles – quanto mais retribuir. Como bom patife, tomo por certa toda a atenção que recebo, distribuindo visitas de médico e doses homeopáticas de atenção – menos por afeto sincero do que para sustentar a minha imagem de bom moço.

Especialmente curioso, tendo em vista tudo isso, é que a oração que repito quase diariamente desde a adolescência é o pedido de poder dar a vida pelos meus amigos (querendo imitar o amor de que, segundo Jesus, não existe maior). É apenas em momentos de lucidez como este que percebo que, na minha cabeça, “dar a vida pelos amigos” fica reduzido a “oferecer meus ricos recursos em favor dos desprivilegiados”. Ou seja, minha presunção é a de permanecer sempre um pouco acima dos meus amigos, estendendo-lhes a mão do meu posto privilegiado, e nunca ao lado deles. Nunca como um deles. Posso abraçar as pessoas, mas não sou maduro o bastante para me identificar com quem quer que seja.

Dar a vida, desde que não seja necessário repartí-la com ninguém.

Aprendi, é claro, a acreditar em todas as mentiras piedosas que digo – e dizem – a meu respeito. Gosto de pensar que sou gentil e generoso, mas minha gentileza e generosidade são tão genéricas que não se aplicam a ninguém em particular – ou seja, ninguém pode contar com elas.

As gentilezas mais fundamentais me abstenho de produzir. Presentes, por exemplo. Meus amigos me cobrem de presentes, mas eu sou conhecido por não dar coisa alguma a ninguém. Nem mesmo uma bala. O Hélio tem sempre uma Coca-Cola, o Ivan uma barra de chocolate, a Carol um doce que ela fez, a tia Lauriza uma caixa de bombons aleatória (ou um pijama) – e assim por diante. Até mesmo meus sobrinhos queridos aprenderam a não esperar presentes de mim. Tirando tudo, minha sobrinha Paula me dá mais presentes (e mais valiosos, feitos com suas mãozinhas) do que dou a ela.

Costumo racionalizar essa escassez dizendo a mim mesmo que não sou apegado a coisas materiais e não quero que ninguém seja. Esse argumento naturalmente não sobrevive ao exame mais superficial – motivo pelo qual nunca o examino. Como prova a história das moedas da viúva, o desapego às coisas materiais não fica provado pelo quão pouco se tem, mas pelo quanto se dá.
{destaque meu - vanillha}
Para minha maior condenação, sou apesar de tudo tratado pelos outros como um rei. Não há ninguém que me recuse uma massagem nas costas – a mim, o patife; a mim, a farsa. O único que aprendeu recentemente a me tratar como mereço (para ver se tomo jeito e mesmo assim de forma mais suave), foi o Ivan – que dentre todos me conhece talvez mais.

Escrevi há alguns anos um uma peça de teatro muito superficial chamada O Ingrato, sobre um sujeito que reclama de tudo, incapaz de perceber os privilégios dos quais é cercado. Pois eu, que não reclamo de nada, sou muito mais ingrato do que ele e do que todos.

38 primaveras depois, o sujeito acorda descobrindo que é um cafajeste. Frodo tinha de pensar que Gollum ainda tinha esperança, mas devo ousar pensar o mesmo de mim?

O mal que não quero, esse faço, mas o bem que todos fazem não faço coisa alguma para imitar.

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