27 de Novembro de 2007
Submetido ao seu julgamento por Paulo Brabo
Estocado em Fé e Crença, Sociedade
A cidade invisível sobre o monte
O mundo pode ser salvo e quero explicar como, mas preste atenção porque só vou dizer uma vez.
É necessário em primeiro lugar que você entenda que (e porque) a situação está mais desesperadora do que já esteve. O mundo está duas vezes mais difícil de salvar do que, digamos, no tempo de Jesus, e não apenas porque há mais gente para ser salva. Tanto a salvação do mundo quanto a específica dificuldade presente estão ligados à qualidade das relações entre as pessoas.
Falando em termos gerais, há dois tipos de associações de pessoas, as instituições e as camaradagens. O que caracteriza as instituições é que elas promovem respostas condicionadas. Num sentido muito essencial, o que fazem as instituições é cercear a liberdade e inibir a criatividade, pelo que servem basicamente como instrumentos de controle social. Prisões, igrejas, empresas, escolas, religiões e formas de governo são instituições, e guardam por essa razão, apesar das diferenças superficiais, grande familiaridade entre si.
As camaradagens, em constraste, são relações autônomas e criativas entre pessoas, e por isso têm sempre algo de informal e algo de provisório. Rodas de samba, caronas, equipes de gincana e parceiros de truco são exemplos úteis, mas também insuficientes, visto que há um enorme leque possível e efetivo de camaradagens na vida real – subsistindo nos mais diversos níveis e construídas sobre as mais diversas bases. A maior parte das camaradagens não tem nome. O que as caracteriza é que, ao contrário das instituições, as camaradagens promovem respostas não-condicionadas ao problema da relação das pessoas com o seu ambiente (incluindo o seu meio-ambiente). Ao invés de instrumentos de controle, as camaradagens servem como ferramentas de convivência.
Não se pode esconder uma boa nova que inclui a todos e qualquer um.
A tentação que assombra as camaradagens, especialmente as mais compensadoras e bem-sucedidas, é, naturalmente, a de tornarem-se instituições. Se digo que o mundo de hoje está mais difícil de salvar é porque há dois mil anos as pessoas viviam em geral mais mergulhadas nas camaradagens do que nas instituições, e na nossa realidade a regra é oposta. Para usar as palavras de Illich, de quem roubei boa parte desta terminologia, a sociedade industrial reduziu a convivência a um patamar mínimo e tornou-nos, em todos os níveis, meros consumidores. Nossa vida é, de cima a baixo, da infância à velhice, da manhã à noite, do trabalho ao lazer, mera resposta condicionada às exigências feitas sobre nós pelos outros e por um meio-ambiente criado pelo homem. Não resta espaço para as interações verdadeiramente criativas nem para a verdadeira autodeterminação, que é simultanemente autonomia e a fraternidade; não nos resta a liberdade de nos submetermos a uma interdependência voluntária, já que vivemos sob o peso de uma interdependência imposta. Numa palavra, não resta espaço para a convivência.
Há dois mil anos, para salvar o mundo, bastava convidar as pessoas para abraçarem uma estirpe radical e revolucionário de convivência. Hoje em dia é preciso lembrá-las, em primeiro lugar, do que é convivência; que há um mundo possível determinado pelas relações autônomas e criativas entre as pessoas, um mundo louquíssimo impulsionado pela graça fragilíssima da camaradagem e não pela sociedade de consumo, pela internet, pelos times de futebol, pela marca da roupa, pelo modelo do carro, pelo peso onipresente das pressões familiares, religiosas, sexuais, econômicas, raciais e políticas.
A boa nova cristã explica que apenas a graça, e portanto a camaradagem, pode salvar um mundo que teima em colocar sua confiança e seus investimentos nas instituições. Deus é amizade, e a linguagem da amizade é perpetuamente livre, provisória e gratuita; depende de sujeições voluntárias e de autonomias ininterruptamente soberanas.
O radical na mensagem de Jesus não está em ele esclarecer o mais ou menos óbvio, que as camaradagens são vida e as instituições morte; o revolucionário está em que ele propõe o passo seguinte, definitivo e louco e definitivamente redentor. Em suas palavras e em seu exemplo o nazareno explica que até as mais belas camaradagens podem tornar-se morte, a não ser que se disponham a manter-se perpetuamente abertas – isto é, dispostas [1] a celebrar a própria precariedade e [2] a aceitar a inclusão de quem quer que seja no seu círculo de convivência.
Mesmo a mais cordial camaradagem é definida por alguma resposta condicionada, e Jesus desafiava continuamente esses limites convencionais. O Filho do Homem, como representante do Deus Não-condicionado, recusava-se a oferecer qualquer resposta condicionada, não importando a situação social em que se encontrasse. Fosse diante de um rei, de um sacerdote ou de uma prostituta, o que Jesus oferecia não era a resposta convencional, estratégica, socialmente adequada e politicamente correta. O que ele oferecia, revolucionariamente, era a oferta de uma vontade livre que não esperava outra coisa da pessoa com quem estava se relacionando. Como resultado sua postura é consistentemente inclusiva, a não ser quando se trata dos que querem perpetuar a instituição e sua resposta condicionada e, através delas, os muros de separação entre as pessoas.
Jesus não apenas vivia entre camaradas, mas propunha um modo de vida em que a camaradagem – a aceitação gratuita e a interação livre, autônoma e criativa – fosse a norma e não a exceção. Sua mensagem e seu ministério resumem-se na demonstração de que a camaradagem divina, e portanto a camaradagem do Filho do Homem (ou, “o ser humano como todos devem ser”), estão continuamente à disposição de quem quer que seja – um político corrupto, um sacerdote mesquinho, um adúltero esmagado pela culpa, uma criança que não vai ter nada inteligente para dizer. O poder dessa boa nova é um poder fragílissimo, uma semente minúscula que pode tornar-se uma grande árvore mas também uma chama que pode ser apagada por quem quer que seja e a qualquer momento.
Jesus pediu que fosse dito a João Batista na prisão que o poder do evangelho era visível porque “a boa nova estava sendo proclamada aos pobres”, isto é, a boa notícia da convivência chegara aos que normalmente não são incluídos em camaradagem alguma. Para Jesus, “não se pode esconder uma cidade construída sobre o monte” significa, basicamente, “não há como se esconder uma boa nova que inclui a todos e qualquer um”. Quando deixa de incluir a todos de forma criativa e indiscriminada, a cidade desaparece de sobre o monte: Deus não existe, a convivência perece, e as mesmas palavras do mesmo Jesus passam de boa nova a farsa e engodo.
Em tempos recentes, a manifestação mais espetacular e sacrossanta que conheço do poder da graça inclusiva não está portanto (e nem poderia estar) em qualquer iniciativa institucional, mas na fragilíssima e despretensiosa iniciativa de Juan Mann (“one man”, isto é, “um [Filho do] homem”) em sair pela rua oferecendo abraços gratuitos. Enquanto esse sujeito avançava cidade adentro erguendo seu rídiculo cartaz os arcanjos cantavam, as hostes celestias aplaudiam, os serafins se dobravam em solene reverência e os demônios se dissolviam em vergonhoso estertor, porque depois de anos a boa nova estava sendo pregada aos pobres. Um único homem convidava o mundo paupérrimo de convivência a uma resposta não-condicionada, e fazia-o oferecendo a forma mais absurda e precária e indiscriminada de camaradagem. A cidade, senhoras e senhores, refulgia inequivocamente sobre o monte.
O que há de mais absolutamente fulgurante na sua iniciativa está em que, ao oferecer abraços gratuitos, Juan Mann está – e preste atenção agora, porque nisso está a salvação do mundo – oferecendo de graça o que qualquer um pode oferecer de graça. Ele não apenas promove a convivência, mas comprova brilhantemente no mesmo gesto que a convivência é dom que qualquer um pode conceder a qualquer momento, em qualquer lugar, a qualquer um. Não é de se admirar que os anjos aplaudam e façam fréneticas ôlas e brindem com suas taças e atirem para cima os seus chápeus. Nós, da instituição, temos um plano de salvação do mundo em que é parte essencial recolhermos ofertas, juntarmos doações, pedirmos dinheiro; ou seja, estamos exigindo, e com a melhor das boas intenções, o que nem todos podem dar – quando a boa nova consiste justamente em desafiar o homem a oferecer a todos o que todos podem oferecer.
É por isso que os grandes luminares da boa nova não são jamais projetos ou campanhas, mas pessoas singulares e despretensiosas, gente que pela sua conduta e pelas suas escolhas facilitam que se criem ao seu redor círculos singulares de convivência e camaradagem, e portanto de transformação social – ciclos de redenção. Gente como Gandhi, que convidava seus seguidores a estenderem a tenda da camaradagem até o terreno dos seus antagonistas; como Madre Teresa, que gentilmente transformou Calcutá numa cidade sobre o monte, brilhando para a eternidade além da dor e do preconceito e da imundície; como Zeca Pagodinho, que cometeu a insanidade de permanecer freqüentando os mesmos bares e os mesmos amigos mesmo depois de ser atingido pela fama. Gente que ousa oferecer de graça o que todos podem oferecer de graça, e assim transforma sua vida em fulcros de camaradagem e de convivência.
Não se iluda. Qualquer um pode trazer luz ao mundo, mas na maior parte do tempo Deus não existe e o evangelho é uma farsa. Não se pode esconder uma boa nova que se aplica a qualquer um, por isso quando não atinge indiscriminadamente a todos a cidade não está sobre o monte, e pode ser facilmente escondida.
Saúde Mental
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Muito tem se falado no aumento dos casos de afastamento por conta de
problemas de saúde mental. Isso não me espanta vendo pessoas que não sabem
mais quem s...
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